terça-feira, 9 de agosto de 2011

Moralidade - Se não existe Deus, por que ser bom?

Quando uma pessoa religiosa dirige-se a mim perguntando "Se não existe Deus, por que ser bom?" (e muitas fazem isso), minha tentação imediata é lançar o seguinte desafio:

- Você realmente quer me dizer que o único motivo para você tentar ser bom é para obter a aprovação e a recompensa de Deus, ou para evitar a desaprovação dele e a punição? Isso não é moralidade, é só bajulação, puxação de saco, estar peocupado com a grande câmera de vigilância dos céus, ou com o pequeno grampo de dentro da sua cabeça que monitora cada movimento seu, até seus pensamentos mais ordinários.

Como disse Einstein:

"Se as pessoas são boas só porque temem a punição, e esperam a recompensa, então nós somos mesmo uns pobres coitados".

Michael Shermer, em A ciência do bem e do mau, acha que a pergunta encerra o debate:

"Se você acha que, na ausência de Deus, cometeria roubos, estupros e assassinatos, revela-se uma pessoa imoral, e faríamos bem em nos manter bem longe de você. Se, por outro lado, você admite que continuaria sendo uma boa pessoa mesmo quando não estiver sob a vigilância divina, você destruiu fatalmente a alegação de que Deus é necessário para que sejamos bons."

Suspeito que boa parte das pessoas religiosas realmente ache que a religião é o que as motiva a serem boas, especialmente se elas pertencem a uma daquelas crenças que exploram sistematicamente a culpa pessoal.

A mim me parece que é preciso uma dose muito baixa de autoestima para achar que, se a crença em Deus desaparecesse repentinamente do mundo, todos nós nos tornaríamos hedonistas insensíveis e egoístas, sem nenhuma bondade, caridade, generosidade, nada que mereça o nome de bondade. Acredita-se que Dostoievski fosse dessa opinião, supostamente devido a algumas declarações que ele colocou na boca de Ivan Karamazov:

"[Ivan] observou com solenidade que não existia absolutamente nenhuma lei da natureza que fizesse o homem amar a humanidade, e que, se o amor realmente existia e havia existido no mundo até então, não era por causa da lei natural, mas só porque o homem acreditava em sua própria imortalidade. Ele acrescentou, num adendo, que era exatamente aquilo que constituía a lei natural, ou seja, que uma vez que a fé do homem em sua própria imortalidade fosse destruída, não seria só sua capacidade para o amor que se esgotaria, mas também as forças vitais que sustentam a vida neste planeta. Além do mais, nada seria imoral, tudo seria permitido, até a antropofagia. E, por fim, como se tudo isso não bastasse, ele declarou que para cada pessoa, como eu e você, por exemplo, que não acredita nem em Deus nem em sua própria imortalidade, a lei natural está destinada a transformar-se imediatamente no exato contrário da lei baseada na religião que a precedia, e que o egoísmo, mesmo levando à perpetração de crimes, não seria somente per-missível, mas seria reconhecido como a raison d'être essencial, mais racional e mais nobre da condição humana."

Talvez por ingenuidade tendi para uma visão menos cínica da natureza humana que a de Ivan Karamazov. Será que realmente precisamos de policiamento, seja feito por Deus ou por nós mesmos, para que não nos comportemos de modo egoísta e criminoso? Quero muito acreditar que não preciso dessa vigilância, nem você, caro leitor. Por outro lado, só para enfraquecer nossa convicção, leia a experiência sobre a desilusão de Steven Pinker numa greve policial em Montreal, descrita por ele em Tabula rasa:

"Quando eu era adolescente, no orgulhosamente pacífico Canadá, durante os românticos anos 1960, era um defensor fiel da anarquia de Bakunin. Ria do argumento de meus pais de que se o governo entregasse as armas o caos tomaria conta de tudo. Nossas previsões concorrentes foram postas à prova às oito horas da manhã do dia 17 de outubro de 1969, quando a polícia de Montreal entrou em greve. Às onze e vinte, o primeiro banco tinha sido roubado. Ao meio-dia a maioria das lojas do centro da cidade havia fechado as portas por causa dos saques. Algumas horas depois, taxistas incendiaram a garagem de um serviço de aluguel de limusines que concorria com eles por passageiros do aeroporto, um atirador assassinou um policial da província, baderneiros invadiram hotéis e restaurantes e um médico matou um ladrão em sua casa, no subúrbio. No fim do dia, seis bancos haviam sido assaltados, cem lojas haviam sido, saqueadas, doze incêndios haviam sido provocados, quilos e quilos de vidros de vitrines haviam sido quebrados e 3 milhões de dólares em prejuízos haviam sido registrados, até que as autoridades da cidade tiveram que chamar o Exército e, é claro, a polícia montada para restabelecer a ordem. Esse teste empírico decisivo deixou minha política em frangalhos."

Talvez eu também seja uma Poliana por acreditar que as pessoas permaneceriam boas se não fossem observadas nem policiadas por Deus. Por outro lado, a maioria da população de Montreal supostamente acreditava em Deus. Por que o medo de Deus não as conteve quando os policiais terrenos foram temporariamente tirados de cena? A greve de Montreal não foi uma ótima experiência natural para testar a hipótese de que a crença em Deus nos torna bons? Ou talvez o sarcástico H. L. Mencken tivesse razão quando disse:

"As pessoas dizem que precisamos de religião, mas o que elas realmente querem dizer é que precisamos de polícia."

É óbvio que não foi todo mundo em Montreal que se comportou mal quando a polícia saiu de cena. Seria interessante saber se houve alguma tendência estatística, por mais leve que fosse, para que os crentes na religião tenham saqueado e depredado menos que os descrentes. Minha previsão desinformada seria a do contrário. Muitas vezes se diz, cinicamente, que não há ateus nas trincheiras. Estou inclinado a desconfiar (com base em alguma evidência, embora possa ser simplista tirar conclusões delas) que haja bem poucos ateus nas prisões. Não estou necessariamente afirmando que o ateísmo aumenta a moralidade, embora o humanismo, o sistema ético que freqüentemente acompanha o ateísmo, provavelmente o faça. Outra boa possibilidade é que o ateísmo esteja correlacionado com algum terceiro fator, como um nível maior de instrução, inteligência ou ponderação, que pode contrabalançar impulsos criminosos. As evidências existentes retiradas de pesquisas certamente não sustentam a idéia comum de que a religiosidade está diretamente relacionada à moralidade. Evidências correlacionais nunca são conclusivas, mas os dados seguintes, descritos por Sam Harris em seu livro Carta a uma nação cristã, são de qualquer forma impressionantes:

"Embora a filiação partidária nos Estados Unidos não seja um indicador perfeito da religiosidade, não é segredo que os "estados vermelhos [republicanos]" são vermelhos principalmente devido à enorme influência política dos cristãos conservadores. Se hou-vesse uma forte correlação entre o conservadorismo cristão e a saúde da sociedade, era de esperar que víssemos algum sinal dela nos estados vermelhos. Não vemos. Das 55 cidades com as taxas mais baixas de crimes violentos, 62% estão nos estados "azuis" [democratas] e 38% estão nos estados "vermelhos" [republicanos]. Das 25 cidades mais perigosas, 76% ficam nos estados vermelhos, e 24% nos estados azuis. Aliás, três das cinco cidades mais perigosas dos Estados Unidos ficam no devoto estado do Texas. Os doze estados com taxas mais elevadas de arrombamentos são vermelhos. Vinte e quatro dos 29 estados com as mais elevadas taxas de assalto são vermelhos. Dos 22 estados com as maiores taxas de assassinato, dezessete são vermelhos."

Pesquisas sistemáticas tendem a sustentar esses dados correlacionais. Gregory S. Paul, no Journal of Religion and Society (2005), comparou dezessete nações economicamente desenvolvidas e chegou à devastadora conclusão de que "taxas mais altas de crença num criador e de culto a ele se correlacionam com taxas mais altas de homicídio, mortalidade juvenil e precoce, taxas de infecção por doenças sexualmente transmissíveis, gravidez na adolescência e aborto nas democracias prósperas". Dan Dennett, em Quebrando o encanto, faz comentários sardônicos sobre esses estudos em geral:

"Inútil dizer que esses resultados abalam tão fortemente as alegações-padrão de que há uma virtude moral maior entre os religiosos que até surgiu uma onda considerável de pesquisas adicionais iniciadas por organizações religiosas que tentam refutá-las [...] uma coisa de que podemos ter certeza é que, se houver um relacionamento positivo e significativo entre o comportamento moral e a filiação, a prática ou a crença religiosa, ele logo será descoberto, já que tantas organizações religiosas estão tão ansiosas para confirmar cientificamente suas convicções tradicionais sobre a questão. (Elas estão bastante impressionadas com o poder da ciência para detectar a verdade quando ela apoia aquilo em que já acreditam.) Cada mês que passa sem que apareça essa demonstração reforça a suspeita de que as coisas simplesmente não são assim."

A maioria das pessoas sensatas concorda que a moralidade na ausência de policiamento é mais verdadeiramente moral que o tipo de falsa moralidade que desaparece assim que a polícia entra em greve ou que a câmera de vigilância é desligada, seja a câmera de verdade, monitorada na delegacia, ou uma câmera imaginária no céu. Mas talvez seja injusto interpretar a pergunta "Se não há Deus, por que se dar ao trabalho de ser bom?" de modo tão cínico. Um pensador religioso poderia oferecer uma interpretação mais genuinamente moral, na linha da seguinte declaração de um apologista imaginário.

"Se você não acredita em Deus, não acredita que existem padrões absolutos de moralidade. Com a maior boa vontade do mundo, você pode até querer ser uma boa pessoa, mas corno vai decidir o que é bom e o que é ruim? Só a religião pode fornecer definitivamente os padrões de bem e mal. Sem a religião você precisará construí-los. Isso seria a moralidade sem normas: uma moralidade a olho. Se a moralidade não é nada mais que uma questão de opção, Hitler poderia alegar estar sendo moral por seus próprios padrões inspirados na eugenia, e tudo o que o ateu pode fazer é ter uma escolha pessoal e viver sob uma orientação diferente. O cristão, o judeu ou o muçulmano, pelo contrário, podem afirmar que o mal tem um sentido absoluto, que vale para todos os tempos e todos os luga-res, segundo o qual Hitler era completamente mau."

Mesmo que fosse verdade que precisamos de Deus para ser bons, isso obviamente não tornaria a existência de Deus mais provável, apenas mais desejável (muita gente não consegue enxergar a diferença). Mas não é disso que se trata aqui. Meu apologista imaginário da religião não precisa admitir que puxar o saco de Deus é a motivação religiosa para fazer o bem. A alegação dele é que, venha de onde vier a motivação para fazer o bem, sem Deus não haveria padrão para decidir o que é o bem. Cada um de nós criaria nossa própria definição de bem e agiria de acordo com ela. Princípios morais que se baseiam somente na religião (em oposição, por exemplo, à "regra de ouro", que normalmente é associada à religião mas que pode ter outra origem) podem ser chamados de absolutistas. Bem é bem e mal é mal, e não vamos ficar decidindo casos isolados, por exemplo, pelo fato de alguém sofrer ou não. Meu apologista da religião defenderia que só a religião pode fornecer a base para que se decida o que é o bem.

Alguns filósofos, notadamente Kant, tentaram tirar morais absolutas de fontes não religiosas. Embora fosse religioso, como era quase inevitável naquela época, Kant tentou basear a moralidade no dever pelo dever, e não em nome de Deus. Seu famoso imperativo categórico convoca-nos a "agir somente segundo a máxima tal que possamos ao mesmo tempo querer que se torne lei universal". Isso funciona direitinho para o exemplo de mentir.

Imagine um mundo em que as pessoas mintam por princípio, onde a mentira seja considerada uma coisa boa e moral. Num mundo assim, mentir deixaria de fazer sentido. Mentir precisa por definição da pressuposição da verdade. Se um princípio moral é algo que devemos desejar que todos sigam, mentir não pode ser um princípio moral, porque o próprio princípio desmorona-ria, sem sentido. Mentir, como norma de vida, é inerentemente instável. Em termos mais gerais, o egoísmo, ou o parasitismo explorador da boa vontade dos outros, pode funcionar para mim, um indivíduo egoísta isolado, e me dar satisfação pessoal. Mas não posso desejar que todo mundo adote o parasitismo egoísta como princípio moral, no mínimo porque senão eu não teria ninguém para explorar.

O imperativo kantiano parece funcionar para o dizer a verdade e para alguns outros casos. Não é tão fácil assim ampliá-lo para a moralidade em geral. Apesar de Kant, é tentador concordar com meu apologista hipotético que morais absolutistas costumam ser motivadas pela religião.

É sempre errado tirar uma paciente terminal de seu sofrimento a pedido dela própria? É sempre errado fazer amor com um integrante de seu próprio sexo? É sempre errado matar um embrião?

Há quem ache que sim, e suas bases são absolutas. Eles não toleram argumentação nem debate. Qualquer um que discorde merece ser morto: metaforicamente, é claro, não literalmente, exceto no caso de alguns médicos de clínicas de aborto americanas. Felizmente, no entanto, as morais não têm de ser absolutas.

Nem todo absolutismo deriva da religião. De qualquer maneira, é muito difícil defender morais absolutistas em outras bases que não as religiosas. O único concorrente em que consigo pensar é o patriotismo, especialmente em tempos de guerra. Como disse o destacado cineasta espanhol Luis Buñuel:

"Deus e a Pátria são um time imbatível; eles quebram todos os recordes de opressão e derramamento de sangue". 

Os oficiais que trabalham no recrutamento apelam fortemente ao senso de dever patriótico de suas vítimas. Na Primeira Guerra Mundial, as mulheres entregavam plumas brancas para jovens que não estivessem fardados.

As pessoas ignoravam as objeções conscienciosas, mesmo as do país inimigo, porque o patriotismo era tido como uma virtude absoluta. É difícil ser mais absoluto que o "Meu país, certo ou errado" do soldado profissional, pois o slogan faz com que você se comprometa a matar quem quer que os políticos de algum tempo futuro resolvam chamar de inimigos. O raciocínio conse-qüencialista pode influenciar a decisão política de ir à guerra, mas, uma vez declarada a guerra, o patriotismo absoluto toma conta com uma força que não se vê fora da religião. Um soldado que permitir que suas idéias de moralidade conseqüencialista o convençam a não partir para o ataque tem grande probabilidade de enfrentar a corte marcial ou até de ser executado.

O ponto de partida para esta discussão sobre filosofia moral foi uma afirmação religiosa hipotética de que, sem um Deus, as morais são relativas e arbitrárias. Deixando de lado Kant e outros filósofos morais sofisticados, e dando o devido reconhecimento ao fervor patriótico, a fonte preferida da moralidade absoluta é normalmente algum tipo de livro sagrado, interpretado como detentor de uma autoridade que supera em muito sua capacidade histórica de justificá-la. Na realidade, os adeptos da autoridade das Escrituras demonstram uma curiosidade perturbadoramente pequena sobre as origens históricas (comumente duvidosas) de seus livros sagrados. Vou me dedicar um tempo para analisar as Escrituras e, futuramente, demonstrarei e postarei aqui que, as pessoas que afirmam retirar sua moral deste, na prática não fazem isso de verdade. O que é muito bom, como concordarão se pensarem bem.